PELÉ: Camisa 10 por acaso

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Um erro da CBD, que deu origem à CBF, quase eliminou o Brasil de sua sexta Copa do Mundo sem, ao menos, entrar em campo. A entidade deixou de dar número aos jogadores no prazo previsto pela organização do Mundial, fato que poderia desclassificar a equipe. Sobrou, então, para o representante do Uruguai, sr. Vilizio, ordenar a numeração, considerada “esdrúxula” pelo jornal A Gazeta Esportiva. O goleiro Gilmar, por exemplo, ficou com a 3. Garrincha, que era 7, jogou com a 11. E Pelé, que tinha apenas 17 anos e, apesar de grande promessa, ainda não era o Rei do Futebol, herdou a camisa 10, número que a partir daí ficaria marcado para sempre como símbolo de craque do time.

Em seu primeiro Mundial, Pelé só entraria em campo no terceiro jogo. Antes de embarcar para o campeonato, em um amistoso contra o Corinthians, no Pacaembu, o jogador praiano sentiu uma entrada dura e ficou afastado dos gramados. Por isso, assistiu das arquibancadas à vitória em cima da Áustria na estreia e o empate sem gols com a Inglaterra. “Eu fiquei de fora, mas, para mim, tudo era novidade. Era uma Copa do Mundo”, relembra, em entrevista exclusiva à Gazeta Esportiva.com. Mas era sua hora de brilhar.

Com o número 10 nas costas e chuteira no pé, fez sua tradicional oração antes de entrar no Estádio Ullevi, em Gotemburgo. Era 15 de junho de 1958, 60 anos depois, Pelé relembra com carinho de sua estreia em Copas do Mundo. “Apesar de eu ser o jogador mais jovem da Copa, com 17 anos, eu pensava muito no povo brasileiro e na minha família. Estava muito confiante”, conta.

Foi a primeira vez de Pelé e Garrincha, em campo, juntos, defendendo a camisa verde e amarelo. Vitória brasileira, com dois gols de Vavá, o segundo, com passe de Pelé. “Mas a Seleção não era só Garrincha e Vavá. Toda a nossa equipe estava muito confiante”, lembra o Rei. Saíram ovacionados e os jornais de todo País destacavam o bom futebol do novato, que impressionava os mais fortes rivais.

 

Em 1958, Pelé tinha apenas 17 anos e já defendia o Santos (Arte: Gazeta Press)

Importante logo de cara

Pelé não tem dúvidas: a partida mais difícil da Copa de 1958 foi no jogo seguinte, contra o País de Gales, quando marcou o seu primeiro gol em Mundiais. Era 19 de junho e o quarto embate da Seleção estava retrancado. Pelé, lembra Pepe, seu parceiro de Seleção e Santos, não tinha folga. Era marcação atrás de marcação. “Mas ele sabia se defender. Quando começavam a dar muito, ele ajeitava, era forte”, recorda o Canhão da Vila. “E o goleiro de Gales pegou, pegou, pegou tudo. Mas sempre ameaçando em um contra-ataque ou outro, então, a gente estava sempre com um pé na frente o outro atrás, porque se você perde o jogo, você volta pra casa”, lembra Pepe, da aflição que acompanhou das arquibancadas, já que ele também estava lesionado e não conseguiu espaço entre os selecionados para a partida.

Pelé voltou para casa com troféu em mãos e considerado o melhor jogador mais novo da disputa (Foto: Acervo/Gazeta Esportiva)

“Mas a gente tinha Pelé e Garrincha, dois gênios fantásticos”, conta Pepe, sem esconder o orgulho de ter jogado com a dupla. Para fazer o gol que deu a vitória aos liderados por Vicente Feola, Pelé fintou com o corpo o central Mel Charles, da equipe britânica. O único tento da partida que levou o Brasil para as semifinais veio aos 28 minutos do segundo tempo.

No noticiário do dia seguinte, não faltaram elogios ao atacante. “Confirmando todas as previsões de êxito, o jovem e consagrado meia santista, nos dois prélios em que atuou, teve desempenho dos mais destacados”, escreveu A Gazeta Esportiva. “Contra o País de Gales foi sua atuação decisiva, pois a partida terminou com o único gol que saiu de seus pés. Entrosado no excelente ataque do nosso selecionado, Pelé tem sua escalação garantida para o prélio contra a França”, continuou o impresso.

Previsivelmente bom

Em 1958, Pelé não parou de surpreender. Na semifinal contra a França, uma goleada por 5 a 2, só deu ele no segundo tempo, quando marcou três gols. O futebol de Pelé era tão impressionante que até os grandes mostravam publicamente sua admiração pelo futuro ídolo. Quando Pelé assinalou o quinto tento do Brasil, o atacante francês Fontaine, goleador máximo da Copa do Mundo, terminando o torneio com 13 gols, partiu em direção de Pelé e, depois de um cumprimento “cavalheiresco”, como descreveu A Gazeta Esportiva, abraçou o brasileiro, emocionado, parabenizando-o pela “esplêndida jogada”. Depois, na decisão, contra os donos da casa, o mineiro ainda balançou a rede duas vezes, com o marcador igual ao da semifinal e, finalmente, o Brasil conquistou o seu primeiro título mundial.

O nascimento de um craque

Pelé sempre foi um jogador diferenciado. Desde pequeno, chamava a atenção pelo domínio de bola, mas não gostava do apelido que ficaria famoso mundialmente. “Fui batizado como Edson e logo na família me chamavam de Dico. Quando meu pai Dondinho foi jogar no Bauru A.C., e eu jogando com amigos na rua, briguei porque começaram a me chamar de Pelé”, lembra. Apesar de ainda não ser o Rei do futebol, ele já jogava como quem samba. O gingado e a malemolência dominavam o campo e o rival. Era um samba bem sambado, mesmo sem a experiência da velha guarda. Um samba que mostrava para os gringos que esse ritmo é brasileiro. Sambado de chuteira suja e cravo na grama.

Sua presença em campo representava marcação e pressão. Sabia pegar firme. “Ele sempre teve uma personalidade forte. Ele confiava muito no taco dele, e nós também”, relembra Pepe. “Ele desequilibrava qualquer momento do jogo, um jogador fantástico, maior jogador do mundo inteiro, igual ao Pelé não tem. Ele foi o único jogador completo que vi, com todos os dons perfeitos”, elogia o amigo, que foi padrinho de seu casamento com Rose.

Nunca vi nada igual.  Esse crioulinho vai ser o melhor jogador do Brasil.

Jogador do Santos desde a base, José Macia lembra da chegada daquele que viria a ser o maior goleador do planeta. No primeiro treino do futuro Rei do futebol na Vila Belmiro, o responsável por marcar o atacante era Chico Formiga. Depois de um treino diferenciado, o defensor foi até Pepe e disse, quase em segredo. “Nunca vi nada igual. Esse crioulinho vai ser o melhor jogador do Brasil”. Para Pepe, seu colega errou. “Pelé foi o melhor do mundo”, conta, em meio ao riso fácil. “Todos recursos que um grande jogador tem que ter, ele tinha. Ele desandou a fazer gols”, conta o segundo maior goleador do Peixe, atrás, apenas, de Pelé.

Depois do excelente começo no Santos, Edson apenas precisava seguir mostrando seu bom futebol. Não precisou muito para convencer. Em julho de 1957, atuou pela primeira vez pela Seleção, no Maracanã, contra a Argentina. “Teve um combinado Santos/Vasco para jogos contra os argentinos”, relembra Pepe. Na ocasião, Pelé começou no banco, com a camisa 13, entrou no segundo tempo e marcou um gol, que o tornou, até hoje, o mais jovem jogador a marcar pela Seleção principal. O Brasil perdeu por 2 a 1, mas Pelé foi escalado no jogo seguinte, três dias depois, no Pacaembu, novamente contra os hermanos. “Desta vez, já entrou como titular, fez outro gol e o Brasil ganhou por 2 a 0. Era claramente um fenômeno, e nunca mais deixaria de ser convocado”, destaca Max Gehringer, autor do livro “Almanaque dos Mundiais”.

A presença na Seleção foi um cargo vitalício. Nunca deixará de ser o eterno dono da camisa 10. Reservou ao Maracanã, que na época era considerada a segunda casa do Santos, para seu adeus à camisa canarinho depois de 14 anos. O craque atuou apenas no primeiro tempo contra a Iugoslávia, não marcou gol, e se despediu diante de um público de mais de 140 mil pessoas.